Desporto / Reportagem

Viagem ao interior das claques

 

O futebol é muitas das vezes sinónimo de convívio e família. Mas ao mesmo tempo existe uma realidade paralela que convive com a versão ‘pacífica’ de viver o jogo. Um mundo onde não há espaço para amizades entre rivais. Onde os diálogos tranquilos dão lugar a cânticos incessantes em nome do clube ou em ofensa do adversário. Onde predominam fumos e petardos. Um espetáculo dentro do espetáculo. 

Em dia de Sporting-Benfica, fui perceber como é que as claques dos dois maiores clubes de Lisboa vivem o dérbi, numa odisseia que tem início junto ao Estádio da Luz e só termina na Curva Sul de Alvalade.

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Um grupo de adeptos do Sporting junto à sede dos Directivo Ultra XXI, uma das claques de apoio ao Sporting

Da Luz para Alvalade 

Passam poucos minutos das quatro horas da tarde e o metro deixa-me na estação do Alto dos Moinhos. Ao fundo já é possível avistar o Estádio da Luz , a casa do Benfica. O ambiente é intimidatório e pouco convidativo para forasteiros: são milhares os que se concentram nas proximidades do estádio, petardos rebentam no meio de uma fumarada vermelha, ao mesmo tempo que os ultras cantam hinos de apoio incondicional ao Benfica ou em ofensa do eterno rival. “Eu amo o Benfica, eu amo o Benfica”, ouve-se num clima de completa euforia.

Ao contrário do que acontece no rival de Alvalade, o Benfica não tem claques reconhecidas oficialmente. No entanto, existem dois grupos organizados que ocupam zonas específicas do estádio da Luz e que prestam o seu apoio ao clube – os Diabos Vermelhos e os No Name Boys. Na teoria o Benfica não possuí claques, na prática estas acompanham a equipa nos jogos em casa e fora de portas, com as suas tarjas e materiais próprios que identificam cada um dos grupos, sendo difícil decifrar a ligação que mantêm com a direção do clube.

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A sede dos No Name Boys, nas imediações do Estádio da Luz

O ambiente faz, efetivamente, lembrar um cenário de guerra. O exército ultima os últimos preparativos para partir em direção à casa do inimigo. Mas aqui as principais armas são as tarjas gigantes que exibem o símbolo do clube ou da claque, são os tambores que acompanhados por gargantas afiadas provocam um barulho ensurdecedor e são também os materiais pirotécnicos, indispensáveis para estes grupos.

Entretanto, a PSP chega ao estádio para acompanhar as claques no cortejo até ao estádio do Sporting. Multiplicam-se os apupos e os gestos obscenos para as forças de segurança pública. Estes também são inimigos.

Recebo uma mensagem do Tiago, é ele que me vai guiar no cortejo até Alvalade. “Camarada, estou a chegar, dá-me mais dez minutos. Nada de referência à cena do jornalismo, nem mesmo ao pé dos meus amigos”. Subo a ponte de acesso ao estádio para assistir ao espetáculo visto de cima. São inúmeros os grupos que, sentados, vão utilizando o álcool como combustível para mais tarde se juntarem à primeira linha do exército. Visto de cima o espetáculo impressiona ainda mais. Lá em baixo é a sede dos No Name e junto a ela  estão centenas de adeptos. No meio da loucura um indivíduo entroncado, sem blusa e com o corpo repleto de tatuagens em alusão ao Benfica conduz as tropas. Os restantes, como fiéis súbditos, seguem o repto do líder e cantam efusivamente “Tu és o meu amor Benfica, o amor da minha vida”.  Discretamente, aproveito para tirar umas fotos – os ultras não acham muita piada à cobertura mediática. Recebo uma nova mensagem do Tiago…  Está a chegar. O cortejo também parece estar prestes a sair da Luz.

Finalmente chega o meu guia, cumprimento-o a ele e aos amigos. “Vamos embora então, o cortejo já partiu”, diz um dos seus. Não há tempo a perder! Pelo caminho encontramos um jovem já caído no chão, extraordinariamente pálido e em pré-coma alcoólico. Os amigos tentam assisti-lo, mas a jornada dele para a Luz acaba aqui.

“Comecei a andar nisto em 2001, quando entrei para os No Name”, conta o Tiago. Atualmente, aos 32 anos, é um ultra moderado. “Vou de vez em quando, mas já me aborrece esta espera toda antes e depois de entrar nos estádios. É um dia perdido”. Discretamente dá-me uma camisola do Benfica e diz: “Toma, veste isto, para não haver confusões, é mais seguro”.

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O cortejo benfiquista de saída para Alvalade

Aceleramos o passo, os amigos do Tiago há muito que ficaram para trás. Finalmente apanhámos o cortejo! São dois milhares enclausurados por um cordão de segurança formado por agentes da PSP. Surge o primeiro adepto vestido à Sporting na varanda de um apartamento e as claques desmultiplicam-se em comentários insultuosos. O ambiente sobe mesmo de tensão quando em Telheiras passamos por um sportinguista a levantar dinheiro no multibanco, obrigando a PSP a distribuir as primeiras bastonadas.

À medida que nos vamos aproximando do estádio do rival o cordão de segurança vai-se apertando, todos tentam avançar o mais para a frente possível no cortejo, porque estar na linha da frente é sinónimo de entrar primeiro no estádio. Sucedem-se os cânticos de amor e juramentos eternos ao Benfica, mas quando avistamos pela primeira vez o estádio da Alvalade todos cantam em uníssono “Já cheira à merda, já cheira à merda, já cheira à merda”.

O destino está próximo. Os da frente já estão bem perto das imediações do estádio. “Sais aqui, é melhor. Se deixas o cortejo ao pé da ‘casa de banho pública’ os lagartos comem-te vivo”, disse-me o Tiago.

Bem-vindos a Alvalade

Do outro lado da barricada o cenário não é muito diferente. Um grupo de adeptos do Sporting espera as claques do Benfica junto à entrada para o estádio para lhes prestarem as ‘boas-vindas’. Eis que surge a primeira fornada de adeptos do clube da Luz. Sucedem-se insultos, impropérios e tentativas de furar o cordão feito pela PSP. “Vocês são a vergonha de Portugal”, grita de forma efusiva e repetida um sportinguista. No meio da confusão, um outro adepto do Sporting conta-me que há poucos minutos atrás, antes das claques do Benfica chegarem às imediações do estádio ocorreram conflitos entre membros das claques dos dois clubes. Foi em boa hora que abandonei o cortejo!

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Os adeptos do Sporting em festa antes do jogo

Paralelamente com esta azáfama, também há quem viva os minutos que antecedem o dérbi de uma forma tranquila. As imediações do complexo estão repletas de adeptos. Todos vêm à bola: desde o sócio cinquentenário que aproveita para beber umas imperiais com os amigos antes do início do jogo, às famílias que aconchegam o estômago com as bifanas nas inúmeras roulottes que circundam as proximidades do estádio ou até o emigrante que veio da Suíça de propósito para ver o jogo. De facto, o futebol é um dos poucos eventos em Portugal capaz de mobilizar pessoas de todos os pontos do país e até do estrangeiro, do mais rico ao mais pobre, do mais novo ao mais velho.               

Já dentro do estádio a Juventude Leonina ultima os pormenores para a ‘performance’ durante o jogo. Em noites de gala, como esta, é habitual o Sporting preparar coreografias especiais para os momentos que antecedem o início do jogo, a estas juntam-se não raras as vezes as coreografias das claques de apoio organizado.

As claques do Sporting são um mundo. Caracterizadas por uma estreita relação com a direção do clube, o Sporting conta com quatro grupos organizados que se juntam na Curva Sul de Alvalade ou nas deslocações fora. Juventude Leonina – mais conhecida por Juve Leo -, Torcida Verde, Directivo Ultras XXI e Brigada Ultras Sporting. Juntas formam o ‘exército verde e branco’.

Faltam poucos minutos para o início do jogo. Na linha da frente o ‘núcleo duro’ da Juve Leo está em reunião interna. Nota-se o nervoso miudinho, tudo tem de correr às mil maravilhas. Estão empoleirados nos ferros que separam a bancada do fosso de Alvalade enquanto esbracejam e trocam ideias. Não são muitos, uns 6 ou 7. Mas, tal como na armada vermelha e branca, o perfil de liderança é idêntico: os ténis das Adidas ou da Nike, as Jeans apertadas, o corpo entroncado e definido do ginásio, as tatuagens e o cabelo rapado de lado são traços comuns a praticamente todos os elementos da ‘elite’ da claque.

O jogo vai começar. Entra o hino do Sporting e logo a seguir os jogadores das duas equipas. O ‘speaker’ pede ao público para virar as cartolinas: “Esforço, dedicação, devoção e glória – Eis o Sporting”, lê-se nas bancadas do estádio. De súbito, uma tarja branca desce na Curva Sul e cobre toda a bancada. Ninguém aqui vê o estádio, está um cortinado gigante sobre as nossas cabeças. O conteúdo da tarja, esse, fica reservado para quem está nos outros sectores do estádio ou a acompanhar pela televisão. Aqui canta-se tresloucadamente e o efeito de estufa provocado pela cortina gigante deixa bem evidente o cheiro a erva.

A tarja desceu, rebentam agora petardos e solta-se a fumarada. O árbitro dá o apito inicial. Que comece o jogo!

A bola já rola, os intérpretes têm agora a palavra. Do outro lado do estádio estão os que vieram da Luz. Foram alojados na caixa de segurança, uma espécie de gaiola destina aos adeptos adversários. As claques do Benfica fazem-se ouvir pela primeira vez e já se sabe qual o resultado… Assobiadela monumental, jogar fora de casa nem sempre é fácil. Mas o exército vermelho e branco não se rende, disso ninguém os pode acusar.  Canta-se de um lado e do outro. É certo que se ouvem mais os da casa, mas também não podemos esconder que é uma luta desigual.

O jogo está no início, mas já ferve! Ederson, o guarda-redes do Benfica, adianta de mais a bola e na tentativa de corrigir o erro atinge Bas Dost dentro da área. O árbitro assinala penálti! É o capitão do Sporting, Adrian Silva, que vai bater.

GOLOOOOO!   Explosão de alegria inexplicável! De súbito parece que todos em redor foram infetados com a doença da alegria. Todos se abraçam, os que se conhecem e os que não se conhecem. Quem estava de pé nas escadas na parte de cima da bancada veio parar junto ao relvado com o ‘mosh’ da celebração. Ainda só decorreram cinco minutos de jogo, estamos na 30ª jornada do campeonato e o Sporting está praticamente afastado do título, mas festeja-se como se fosse o golo de uma vida.

Com o golo os cânticos sobem de tom. Entre saltos e empurrões fazem-se juras de amor ao clube de Alvalade: “Sporting, tu és a minha vida, eu sem ti não sei viver”. Bandeiras ao alto, os petardos rebentam – fazem parte da festa. “No pyro, no party”, lê-se na camisola de um dos membros da Torcida Verde. “Pyro is not a crime”, consegue-se ler na sweat de uma rapariga mais à frente. São lemas do movimento Ultra. Ao contrário do que defendem, o uso de material pirotécnico continua a ter punições previstas na lei, mas nem assim deixa de ser presença constante nos estádios de futebol.

bancada curva sul

A Curva Sul em festa depois do golo do Sporting

A primeira parte aproxima-se do fim. O Benfica dá luta, não se dá por vencido. O jogo esta vivo e equilibrado. Mas quando se trata de derbies ou de clássicos os adeptos não perdoam. Como se costuma dizer: “os derbies não se jogam, ganham-se”. E o simples facto do marcador indicar 1-0 para a equipa da casa é suficiente para deixar o estádio em polvorosa.

Termina a primeira parte do encontro, nada está decido. Temos jogo para a segunda parte. Com o intervalo serenam os ânimos, também é preciso descansar. Muitos aproveitam para recarregar baterias. “Onde é que estão as mortalhas? Estou com uma moca tão grande que já nem as encontro”, diz um jovem na bancada ao amigo.

Mas engane-se quem pense que nestes grupos só há espaço para a juventude. Vê-se muitos membros ‘old school’. É o caso de Filipe Costa, de 45 anos. O símbolo do Sporting tatuado nas costas não deixa dúvidas sobre a importância do clube na sua vida. Entrou no mundo das claques aos 17 anos e nunca mais parou. “Isto sempre foi a minha vida. Comecei na Juve Leo, naquele tempo era outro espírito… Só quem esteve lá é que sabe a loucura que aquilo era”. Mais tarde, em 2002, esteve na fundação dos Directivo Ultras XXI. “Na altura foi um novo projeto de apoio ao grande Sporting e eu entrei com a pica toda. Directivo é Directivo, é até morrer. Somos um mito, não importam nomes nem caras, o fundamental é o apoio” – defende. Questionado sobre a possibilidade de abandonar o grupo, Filipe não hesita na resposta. “Quando entras é muito difícil saíres – a paixão é muito grande -, enquanto tiver forças vou continuar na Curva Sul”. Os jogadores entram em campo e o Filipe diz-me: “Pá, agora tenho mesmo de ver o jogo, desculpa lá”. Termina assim a nossa conversa.

Entram os artistas do Sporting e o do Benfica, treinadores e equipa de arbitragem, está tudo pronto para o segundo tempo…

O Benfica continua a dar luta. A turma da Luz precisa de pelo menos o empate para manter o primeiro lugar da classificação. Mas nem mesmo o facto dos encarnados estarem por cima do jogo faz diminuir o apoio em Alvalade. O estádio une-se e canta repetidamente “Braços no ar, todos de pé, vamos gritar Sporting Allez”. O líder da orquestra é Mustafá, o cabecilha da Juve Leo, que de megafone na mão e de costas para o jogo – é preciso alguém sacrificar-se para comandar as tropas – puxa pelos adeptos. Mas a certa altura Alvalade ganha vida própria, já nem precisa de maestro.

Sucedem-se as ocasiões de perigo para o clube da Luz e as bancadas dão os primeiros sinais de impaciência e preocupação. É livre direto para o Benfica e um improvável protagonista assume a marcação. Victor Lindelof, defesa central dos encarados, subiu da defesa até à zona avançada de terreno para bater o livre. Vai bater…. E é GOLOOO! Balde de água fria tremendo em Alvalade, o Benfica repõe a igualdade.

A tristeza de uns é alegria dos outros. No outro lado, a armada benfiquista silencia Alvalade pela primeira vez. “Benfica, dá-me o 36”, é o pedido dos adeptos encarnados quando faltam 25 minutos para o fim do jogo e mais quatro jornadas para terminar o campeonato.

Mas o jogo ainda não acabou. Depois de alguns minutos de desânimo Alvalade repõe-se e regressa ao apoio. É certo que para o Sporting a vitória pouco adiantará na classificação, mas em dérbies ninguém gosta de perder e uma vitória perante o eterno rival seria uma boa prenda para os adeptos leoninos.

O jogo caminha para o fim e o Benfica vai controlando. Os tricampeões nacionais trancaram as portas da baliza e vão circulando a bola em zona segura, enquanto o Sporting se revela incapaz de contrariar a gestão benfiquista.

ACABOU. O empate a uma bola não deixa benfiquistas em êxtase nem fere o orgulho dos adeptos do Sporting. Com o final do jogo os jogadores dirigem-se, como habitual, para próximo da Curva Sul a fim de agradecerem o apoio dos adeptos que, apesar do empate e do terceiro lugar que o clube ocupa, correspondem de forma devota. “SPORTING, SPORTING, SPORTING”. Como pode um simples jogo despertar tantas emoções num ser humano?

 

 

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